Pensador analisa eleições históricas. Os impactos e limites de uma possível vitória de Lula. Os riscos de um Congresso norte-americano alinhado a Trump. Como formular, em tempos turbulentos, alternativas que desafiem o sistema
Noam Chomsky, em entrevista a José Guilherme, Vanessa Nicolav e Hugo Albuquerque, na Jacobin Brasil
O linguista norte-americano Noam Chomsky – um dos maiores intelectuais públicos mundiais do último meio século – está no Brasil. Daqui “de baixo”, e do alto de seus 93 anos de idade, ele observa atentamente os desdobramentos de duas disputas políticas globais, simultâneas e correlatas: de um lado, o segundo turno das eleições brasileiras no próximo 30 de outubro, em que Jair Bolsonaro tenta a reeleição contra o ex-presidente Lula; de outro, as eleições legislativas norte-americanas, em que os republicanos buscam retomar o controle do Congresso e travar o governo de Joe Biden.
É nesse contexto que a Jacobin Brasil, sob a batuta de Hugo Albuquerque, José Guilherme Pereira Leite e Vanessa Nicolav, produziu essa entrevista. Procuramos decifrar este momento dramático da humanidade e, ao mesmo tempo, pensar em rotas de resistência e renovação.
Quando a câmera se abriu para a nossa equipe na entrevista, Chomsky surgiu como um velho sábio, lembrando a figura do Eremita – Arcano de número 9 – do Tarot de Edward Waite. O rosto parcialmente coberto por uma barba longuíssima, os olhos serenos e a voz calejada conjugaram-se por quase duas horas na expressão de uma inteligência cortante. É a clarividência simples e direta de um personagem histórico, que testemunhou as principais agruras geopolíticas que nos atravessam desde a Guerra do Vietnã.
O tom sereno e pausado de sua fala não esconde porém a gravidade do mundo por ele descrito. É, entretanto, um mundo que, embora aturdido por catástrofes climáticas, avanço do fascismo e cenário geral de belicismo, contém para Chomsky – ainda – a perspectiva de uma superação possível. No centro dessa superação está para ele a força dos movimentos sociais que, mesmo tantas vezes esmagados, sempre renascem e deixam os seus avanços.
Você tem falado sobre as eleições brasileiras. Qual a maior ameaça que Bolsonaro representa para o mundo, tanto do ponto de vista estratégico quanto ideológico? Bolsonaro antecipa “o novo normal”, isto é, essa forma de ultraliberalismo radical e exterminatório?
Primeiramente, eu seria cauteloso com a palavra ultraliberalismo no que diz respeito a Bolsonaro. Isso é aplicável ao Ministro da Economia dele, Paulo Guedes, cujos slogans sempre giram em torno da privatização de tudo para deixar aos cuidados da esfera privada etc.. Isso é chamado “liberalismo” atualmente, mas na realidade, é um autoritarismo profundo. É entregar tudo aos centros de poder menos transparentes que existem. Trata-se, na verdade, de neoliberalismo, e ele tem dominado a cena política nos últimos 40 anos, disfarçado de discurso sobre mercados. Isso é quase sempre uma fraude.
Esse neoliberalismo é uma guerra de classes selvagem, um capitalismo desenfreado. Quais são as suas consequências? Vejamos os Estados Unidos, por exemplo. Mesmo a Rand Corporation estimou que cerca de 50 trilhões de dólares foram distribuídos ao 1% mais rico da população, isso só nos últimos 40 anos, a partir do início da presidência de Ronald Reagan, em 1981. As consequências disso podem ser observadas por vários aspectos.
Desde os anos 1970, os Estados Unidos não eram muito diferentes de qualquer país desenvolvido, em termos de serviços de saúde, custos do sistema de saúde e mortalidade, índice de encarceramento, entre outros. Agora está tudo fora de controle. Atualmente, os índices de encarceramento dos Estados Unidos, que estavam na média durante os anos 1970, atingiram algo em torno de 10 vezes a taxa dos outros países desenvolvidos. O custo da saúde nos Estados Unidos é cerca de duas vezes mais alto do que em países do mesmo porte, mas os resultados estão entre os piores.
Quando Margareth Thatcher se tornou primeira-ministra do Reino Unido, em 1979, quase na mesma época de Reagan nos Estados Unidos, sua primeira medida foi enfraquecer e desmontar os sindicatos de trabalhadores. Isso abriu as portas para as grandes empresas usarem meios ilegais, como a sabotagem de greves, para impedir a organização dos seus empregados. Tudo isso foi ilegal, mas quando se tem um Estado criminoso, não faz diferença. Situações similares aconteceram no mundo todo.
Uma das consequências disso é deixar a população enfurecida, ressentida, indiferente às instituições. É o terreno fértil ideal para demagogos como Jair Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, e outros. Essas figuras aparecem prometendo a salvação para a angústia e o sofrimento infligidos aos trabalhadores. E enquanto prometem isso, estão, na verdade, intensificando essa situação, pois pessoas como Bolsonaro ou Orbán estão trabalhando para os opressores.
Observem a agenda legislativa de Donald Trump nos Estados Unidos. Basicamente, sua meta principal era cortar os impostos sobre os muito ricos e o setor corporativo, o que significa gerar mais fardos a todo o restante da população, levando à continuação do corte de benefícios para a classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, Trump surge com um discurso de “Eu sou seu salvador, o problema não é minha agenda, são os imigrantes, os negros etc… os culpados. Preocupem-se com eles!”
Aliás, antes de voltarmos a Bolsonaro, me deixem acrescentar que teremos uma outra eleição, uma semana depois da brasileira, só que nos Estados Unidos, em 8 de novembro. Será uma semana fatídica. Estamos falando das duas maiores sociedades do hemisfério ocidental, o colosso do Norte e do Sul — sendo que o este último, o Brasil, despendeu gigantescos esforços para alcançar seu potencial, tanto em desenvolvimento quanto para ter voz, sobretudo entre os anos 1950 e início dos 1960, com o Presidente Juscelino Kubitschek. A oposição a isso pelo governo de John Kennedy nos Estados Unidos abriu o caminho para o golpe militar no Brasil, uma das primeiras pragas com tendências neonazistas que se espalharam pela América Latina. Uma pestilência aterradora de retrocesso.
Com o governo de Lula, rapidamente o Brasil se tornou um dos países mais influentes e respeitados do mundo, a voz do Sul global, com imensa redução da pobreza, com inclusão. Então vieram os golpes soft que levaram ao governo Bolsonaro, causando o retrocesso atual. Se Bolsonaro conseguir se manter no poder, seja por meio das eleições ou de alguma forma de golpe, e, uma semana depois, o Partido Republicano dos Estados Unidos — que é por si protofascista — tomar o controle do Congresso já tendo o controle da Suprema Corte, ele cercará o Poder Executivo e, assim, entrará em risco o que resta da democracia nos dois maiores países do continente.
Por sua vez, na Europa, Viktor Orbán conduz a Hungria na direção de se consolidar como uma democracia intolerante, em que o Estado aumenta seu poder coercitivo limitando instituições acadêmicas, veículos independentes de imprensa e partidos políticos. Assim, ele projeta uma sociedade fundamentalmente racista, cristã e nacionalista, os mesmos ideais e fundamentos do Partido Republicano norte-americano. E Orbán, por sinal, foi a atração principal da Conferência Conservadora de Ação Política, principal evento da direita dos Estados Unidos e, por tabela, do Partido Republicano. Donald Trump não cansa de fazer discursos com menções a Orbán — e vice-versa. Esse é o ideal que querem alcançar e medidas estão sendo instituídas em diversos Estados republicanos nesta direção.
Em 8 de novembro, os republicanos pretendem tomar o Congresso, preparando o caminho para o próximo passo. O que isso significa? Significa que no hemisfério ocidental as duas maiores potências, uma delas fazendo as vezes de governo mundial, estariam essencialmente em mãos de forças fascistas. Isso terá efeitos estrondosos nos outros países do hemisfério.
Republicanos e bolsonaristas atrasarão os esforços para as reformas moderadas que podem ser feitas em seus países. E isso terá impactos cruéis e brutais em nível global, devido ao imenso tamanho dos Estados Unidos e do Brasil. Então, esse pode ser um real impulsionador ao crescimento de forças profundamente reacionárias em todo o mundo. Forças que, em suas bases populares, resultam de uma fratura da ordem social pela guerra de classes selvagem dos últimos quarenta anos.
Depois de Bolsonaro, o Brasil se tornou mais violento. Não só a polícia, mas muitas famílias e indivíduos estão armados. Há uma militarização também em escala molecular, para além dos milhares de militares na administração federal. Na sua visão, quais as consequências disso, especialmente da base organizada da extrema direita?
Minha esposa, que é brasileira, e eu estávamos assistindo aos noticiários brasileiros na última noite. Vocês provavelmente também viram. Um dos segmentos era uma peça bastante fantástica, na qual a polícia federal era responsável pela administração de um programa para crianças, de três, quatro, cinco anos de idade, em que os ensinavam a manusear rifles militares. E eles ensinam essas crianças a desfilarem com capacetes, manejando esses rifles.
Tinha uma cena em que eles estavam treinando elas! Crianças lidando com todo tipo de armamento militar, sendo treinadas para funções bélicas. Foi algo bastante chocante.
Bolsonaro, vocês sabem melhor que eu, liberou uma enxurrada de armas na sociedade. O Brasil costumava ser moderadamente rigoroso com o acesso a armas, mas Bolsonaro simplesmente removeu essas restrições. E isso fez chegar esse armamento às milícias. Tudo isso será a base de um eventual golpe. Pode não ser como em 1964, mas seria algo parecido.
A crítica de Bolsonaro à ditadura brasileira é de, segundo ele, os generais daqui não foram brutais como seus parceiros na Argentina, que executaram 30 mil pessoas. Ele deixou suas intenções bastante transparentes, de diversas formas, nem preciso mencioná-las. Quando Bolsonaro proferiu seu voto favorável ao fraudulento impeachment de Dilma Rousseff, ele dedicou seu voto inteiramente ao torturador dela, um horror sem palavras que o descreva. Essas armas precisam estar sob controle, senão, vocês se tornarão algo parecido com a Alemanha nazista.
No Brasil, a principal figura de esquerda, há décadas, é Lula. Em razão disso, ele acabou sendo tratado como uma figura messiânica pela classe trabalhadora. Depois dele, temos poucas lideranças de esquerda com destaque. Como você vê essa que, possivelmente, será a última batalha dele? E como poderá ser o pós-Lula?
No Brasil, como ocorre de forma geral, líderes políticos surgem de movimentos sociais, tornando-se seus porta-vozes. Martin Luther King foi uma figura fundamental, mas não o teria sido, e acho que ele concordaria com isso, se não fosse pelos jovens do Comitê Estudantil Coordenador Não-Violento. Eles dirigiam os “ônibus da liberdade” pelo Alabama e pela Geórgia, arriscando suas vidas, tentando encorajar camponeses negros a votar. Ativistas reais, jovens ativistas que dirigiam essas atividades nas bases, foram eles que criaram a onda com a qual King pôde se tornar um representante eloquente.
Já o Brasil tem o que eu considero ser o movimento popular mais importante do mundo: o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). Um movimento enorme, muito corajoso, fazendo coisas importantes, no qual há figuras bastante impressionantes. E que teve inclusive resultados relevantes nas últimas eleições — assim como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Se observarmos esses movimentos atentamente, notaremos novos líderes surgindo.
Devo dizer que uma das falhas do PT, em meu ponto de vista, foi a falta de organização local efetiva. Portanto, tem sido bastante chocante observar tantas pessoas que foram beneficiadas pelos programas sociais dos governos petistas não reconhecerem de onde tudo isso veio. Eram então crianças e jovens que puderam frequentar a escola e a universidade devido aos programas de inclusão, ao Bolsa Família, que impulsionou a criação de pequenos negócios e etc.. Com uma aposta intensiva em organização local, creio que essa questão da formação de lideranças deixaria de ser um problema.
Os partidos e os sindicatos foram muito enfraquecidos no Brasil nas últimas décadas, assim como os movimentos sociais, se compararmos com a década de 1980. Em que medida as práticas do anarquismo e o anarcossindicalismo — todos reivindicados por você em certos momentos — podem oferecer possibilidades para uma renovação da esquerda e o combate dessa ascensão da direita?
Voltando ao MST, ele é um bom exemplo. Muito do que eles fazem é o desenvolvimento de uma sociedade cooperativa, de propriedade cooperativa, participação, desenvolvimento fundamentalmente centrado em indústria de base agrícola, como a indústria de laticínios e outras, que realmente circulam na sociedade em geral.
Essa é a forma como movimentos populares verdadeiros são desenvolvidos: trabalhando em direção de uma economia participativa cooperativa, em uma escala bastante significativa. Mas é preciso expandir isso cada vez mais, integrando-a às áreas urbanas, com o crescente movimento dos sem teto.
Olhemos para os movimentos anarquistas relevantes, como o anarquismo espanhol e a forma como ele se desenvolveu ao longo de décadas. Só que chegou uma hora em que eles não conseguiam seguir em direção a uma real revolução anarquista e ficaram sob a pressão de uma combinação de fascistas, comunistas e democracia liberal — isso foi muito forte, muito pesado.
E podemos ver esse tipo de desenvolvimento com frequência. Pegue os Estados Unidos como referência. Há algo chamado “populismo” hoje, que nada tem a ver com a versão popular tradicional. O populismo tradicional era um movimento radical de produtores rurais independentes tentando desenvolver o que chamavam de “regras comuns cooperativas”, que os libertaria dos Estados Unidos. Banqueiros do Norte e do Leste dos Estados Unidos e agentes de mercado articularam a destruição desse movimento de trabalhadores, um dos mais vibrantes dos fins do século XIX. Isso teria sido uma base para um Estados Unidos bastante diferente. É claro que essa destruição aconteceu por via da força.
A elite capitalista nos Estados Unidos é bem organizada, bastante consciente de sua natureza de classe, sempre batalhando duramente na luta de classes. Ela é capaz de mobilizar recursos estatais e de tratorar o que for necessário. Mas isso ocorreu repetidas vezes em vários outros países. É em relação a isso que o MST resiste aqui no Brasil também.
Antes dos anos 1920, o movimento dos trabalhadores foi quase completamente destruído pelas medidas altamente repressivas do presidente Woodrow Wilson, que liderou a pior repressão da história norte-americana. Milhares de radicais foram deportados, o pensamento independente foi extinto, a desigualdade era imensa, parecida com agora, e o movimento sindical foi praticamente extinto.
Nos anos seguintes, dos quais eu já tenho memória própria, iniciou-se a criação da Congresso das Organizações Industriais (CIO), fundada em 1935, uma grande central sindical que promoveu grandes atos militantes de trabalhadores, modificando a política dos Estados Unidos. Os Estados Unidos chegaram a ter um governo razoável, que estabeleceu as bases de uma moderna democracia social que, embora tenha tido muitas falhas e recebido muitas críticas, promoveu grandes avanços em políticas de bem-estar social e direitos humanos. Essa ascensão dos movimentos nos Estados Unidos exigiu um imenso esforço, por parte dos mestres da economia americana e do sistema político, para desmantelar isso novamente.
Mas acho que pode renascer, e acho que também é possível esse renascimento para o Brasil e para outros lugares. Vemos sinais por toda parte, neste momento. O que vem ocorrendo na Colômbia e no Chile pode acontecer no Brasil. Isso faria uma enorme diferença, até pelas proporções e, consequentemente, pela influência que o Brasil tem no Sul Global.
Você tem falado muito sobre a destruição da Amazônia. Além de Bolsonaro promover isso, também temos a cumplicidade do mercado global e da comunidade internacional, que não apoia diretamente a devastação mas não toma medidas concretas contra o atual governo brasileiro. Seria a Amazônia a fronteira final do capitalismo?
Pode ser a fronteira final da sociedade organizada na Terra, não apenas para o capitalismo. Assim como foi de conhecimento geral, por um longo tempo, que se as tendências atuais persistirem, a Amazônia, da qual a maior parte é território brasileiro, será obliterada. E, assim, chegaremos a um ponto em que a umidade produzida será insuficiente para sustentar a floresta, e ela se tornará uma savana, ao invés de ser o maior reservatório de carbono, vai se tornar um imenso emissor de carbono.
Isso é um desastre para o Brasil, uma catástrofe que o mundo não terá realmente como superar. Era algo previsto para acontecer em algumas décadas, mas, recentemente, os cientistas brasileiros descobriram que, com o aumento do desmatamento madeireiro ilegal, a mineração, o agronegócio financiado pelo governo Bolsonaro começou a tomar porções da Amazônia que já se encontram em estado crítico — o qual só era esperado para décadas mais adiante.
Uma das piores consequências da eleição desse primeiro turno, foi a eleição de pessoas como Ricardo Salles. Ele é uma liderança da verdadeira campanha para destruir a vida humana na Terra. Isso soa como um exagero, mas não é. É isso que significa a destruição da Amazônia, que é uma das principais formas de comprometer a vida humana.
Voltemos ao dia 8 de novembro nos Estados Unidos. O Partido Republicano pode tomar o Congresso. Eles são 100% negacionistas, não se importam, negam que a mudança climática esteja ocorrendo. E dizem “quem se importa?”. Trump era o mais explícito em relação a isso, mas o resto do Partido Republicano também não se importa, porque está enriquecendo empresas de combustíveis fósseis, cujos lucros estão explodindo.
Muitas outras coisas que estão acontecendo ao redor do mundo e, assim como a destruição da Amazônia, são espantosas. O Ártico tem esquentado bem mais do que os cientistas esperavam, e isso tem como consequência o derretimento dopermafrost, que tem uma quantidade astronômica de carbono armazenado e que começa a derreter, liberando consequentemente gases tóxicos na atmosfera.
Uma das principais empresas de energia, a ConocoPhillips acabou de anunciar uma descoberta científica importante. Encontraram uma forma de desacelerar o degelo do permafrost no Alasca, onde exploram petróleo, por um método mediante o qual se introduzem hastes metálicas no gelo. Por que estão fazendo isso? Para que possam endurecer a superfície e extrair o petróleo, mantendo a produtividade. Então não é só capitalismo selvagem — em forma bestial. Atrasaremos o degelo do permafrost para que possamos extrair, precisamente, e mais rapidamente, o material que destruiu o mundo.
Coisas assim estão acontecendo em todo lugar. Muitos estavam bastante empolgados com a incrível proeza de Israel e Líbano terem chegado a um acordo, há poucos dias, sobre uma antiga disputa territorial no mar Mediterrâneo. Mas isso tinha apenas a ver com a repartição das áreas de extração submarina de gás, o que pode ser, na verdade, um golpe de misericórdia mais rápido nos países que possuem costas no Mediterrâneo.
Alguns cientistas descobriram que as estimativas de aumento do nível do mar no Mediterrâneo eram muito moderadas. E a previsão agora é de que, no fim desse século, esse aumento chegará a dois metros e meio. Imaginem isso: dois metros e meio de aumento do nível do mar!
Então, Israel e Líbano estavam discutindo sobre quem vai ter o direito de enfiar a adaga no coração de todas aquelas sociedades. Isso é o que está sendo celebrado. Quando você vai ao sul da Ásia, você presencia coisas similares. É como se aqueles que Adam Smith chamava de “mestres da humanidade” tivessem feito uma aposta para ver quem nos destruiria primeiro.
Alguns dias atrás, a Associação Meteorológica Mundial mostrou sua análise da situação climática global, dizendo que devemos dobrar os investimentos no desenvolvimento de tecnologias sustentáveis até 2030, poucos anos daqui até lá, se quisermos ter esperanças de sobreviver de forma organizada. Enquanto isso, na Ucrânia, os poderes globais estão investindo recursos escassos na destruição em massa, retrocedendo os esforços limitados que deveriam ser direcionados para lidar com a crise climática. Ao mesmo tempo, condenam a Arábia Saudita por não estar produzindo óleo suficiente para a destruição.
Alguém assistindo isso do espaço, pensaria que essa espécie está enlouquecendo, a luta de classes se tornando completamente bestial.
Podemos aprender com sua obra que existe uma conexão entre assuntos internos e externos para todos os países… O mundo está conflagrado. E Biden tem lançado uma política demasiado agressiva de expansão da OTAN – o que não tem sido suficientemente debatido. Mesmo figuras como Kissinger tem alertado sobre isso. Como você vê isso? Como você acha que o mundo está dividido hoje? Qual é a “ordem” para além da “desordem” superficial?
Os alertas de Henry Kissinger são os mesmos dos altos escalões dos corpos diplomáticos nos últimos 30 anos, pelo menos entre aqueles com alguma familiaridade com questões envolvendo Rússia e Europa. Notadamente, George Kennan, nos anos 1990, alertou fortemente Bill Clinton para que não iniciasse o processo de expandir a OTAN. Jack Matlock Jr, um dos principais especialistas em diplomacia dos Estados Unidos e embaixador de Ronald Reagan na União Soviética, disse a mesma coisa. Alguns cabeças da CIA, incluindo o seu atual chefe, William Burns, também ex-embaixador na Rússia, alertou que isso tudo era algo extremamente perigoso.
Robert Gates, o segundo secretário de defesa de Bush, bastante belicoso, foi irresponsável e provocativo ao tentar integrar a Ucrânia à OTAN. Nenhum líder russo aceitaria isso em seu plano estratégico. Gorbachov, Yeltsin, nenhum deles sequer começaria a aceitar isso.
Então isso vem acontecendo há 30 anos. No ano passado, e desde 2014, os Estados Unidos não apenas tem falado em integrar a Ucrânia e a Geórgia ao comando da OTAN, mas estão fazendo isso de fato e vem executando isso desde antes da gestão de Biden, desenvolvendo ações que efetivamente integram a Ucrânia ao comando militar da OTAN. De tal forma que periódicos do exército literalmente descrevem a Ucrânia como um membro da OTAN de fato, com interoperabilidade de armas e com cooperações em operações militares, disponibilizando armas ofensivas. Os russos estão fazendo o mesmo com a China.
Depois que Biden assumiu a presidência, ele expandiu isso. Principalmente a partir de setembro de 2021, com uma decisão oficial de expandir as operações na Ucrânia e caminhar para a adesão dela à OTAN. Foi o próprio Departamento de Estado que declarou, publicamente, não estar levando em consideração as preocupações russas de segurança.
Bem, este é o plano de fundo para a invasão russa. Ele não fornece qualquer justificativa para a invasão e, na realidade, invasões são geralmente agressões imperialistas brutais, mas também inconcebivelmente estúpidas.
Temos por exemplo as transcrições das discussões entre o presidente francês Emmanuel Macron e o presidente russo Vladimir Putin – disponíveis até poucos dias antes da invasão. Macron oferece outra proposta para que fossem acomodados os interesses russos sem a necessidade de uma invasão. Putin se desculpa e diz que não poderia mais continuar a conversa pois tinha que ir esquiar no gelo, literalmente, naquele fim de semana. Então o que ele fez foi o maior movimento em direção à OTAN, já que havia colocado a Europa no bolso dos Estados Unidos, o melhor presente que poderia ter dado a Washington. E nesse ponto temos que regressar um pouco e pensar no que vem acontecendo com nosso Exército.
Quando a União Soviética colapsou, houve muitas discussões sobre qual organização global emergiria disto. E há dois cenários diferentes que surgiram contendo raízes mais fortes. Um deles é a tão chamada visão do atlantismo, baseada na necessidade de governar dos Estados Unidos, com a Europa submetida a isso. É a perspectiva pela qual os Estados Unidos manteriam seu posicionamento global como conhecemos.
Uma posição alternativa foi oferecida por Mikhail Gorbachov, na época do Protocolo de Lisboa, uma grande aliança europeia, sem alianças militares, sem vitoriosos, sem derrotados, cooperativamente trabalhando juntos em direção a algum tipo de sociedade democrática em toda a região da Eurásia.
Mas os Estados Unidos foram fortemente opositores dessa proposta — e Kissinger também, exigindo um papel dominante dos Estados Unidos sob o enquadramento atlantista. Mas eu entendo que Vladimir Putin acabou contribuindo para empurrar a Europa nessa direção.
A parceria entre Europa e Rússia é muito natural. Eles se complementam, e de muitas maneiras. A Europa baseou seu sistema industrial, principalmente a Alemanha, na necessidade de estar mais próxima dos minerais valiosos da Rússia e na oportunidade de se mover mais para o Oriente, com a iniciativa chinesa da Nova Rota da Seda. Miraram o investimento e o desenvolvimento do próspero mercado chinês.
Então o que temos hoje é um conflito sobre se o mundo será unipolar – dominado pelos Estados Unidos, com a Europa submetida a isso – ou será um mundo multipolar, com inúmeros centros de poder cooperando. Pela ordem unipolar, o hemisfério ocidental também estaria submetido ao poderio dos Estados Unidos, especialmente com Bolsonaro. O Sul Global tenta se manter fora disso, mas não é uma força majoritária. Eu entendo que deveríamos estar cooperando.
O aquecimento global não tem fronteiras. Se houver guerra nuclear, tudo estará destruído. A pandemia não teve fronteiras. Caso após caso, ou estamos todos juntos nessa, ou afundamos todos juntos. E não há muito tempo para esses temas, eles devem ser tratados dentro das próximas duas décadas para que seja esse o ponto de virada. Recuperação já não é algo possível. Estamos enfrentando um momento único na história humana, e um elemento fundamental é o modo como essas questões de unipolaridade e multipolaridade serão resolvidas.
O Brasil teve um papel muito significativo nisso, principalmente sob o governo de Lula, quando ele agia revitalizando instituições do Sul Global, como a Unasul, por exemplo, ou o BRICS, em que o Brasil era base — e poderia ser uma grande força em alguns anos — ou, até mesmo, produzindo avanços notáveis no Banco Mundial, que não é uma instituição particularmente progressista. O Brasil estava se tornando eloquente, importante para o Sul Global. E era um país altamente respeitado, e pode ser ainda com Lula no governo. Com seus ministros, há muito mais espaço para um grupo internacional bastante eficaz e construtivo surgir novamente. Ou podemos ter Trump e Bolsonaro, futuramente, aglutinando forças reacionárias e destrutivas tanto para o clima quanto para as políticas sociais. Um mundo bastante diferente do que ele deveria ser.
Há dez anos, estávamos celebrando as promessas e potencialidades da internet e da cultura digital, da democracia digital e etc… Isso nos levaria a novas formas de participação, debate, engajamento etc… Hoje, essa esfera paradisíaca virou um inferno… o inferno de mentiras, falsificação, adulteração, antitransparência, em uma palavra, “falha de comunicação babélica”… Você concorda? O que dizer sobre isso?
A linguagem não responde a essas questões. O que aconteceu com a internet é o que acontece com toda tecnologia. A maior parte das tecnologias são neutras. Um martelo que pode ser utilizado para construir uma casa também pode ser usado por um torturador para esmagar a cabeça de alguém. O martelo não mata. E quase toda tecnologia, mesmo coisas como a tecnologia nuclear, mesmo que sejam desenhadas para destruir e devastar, talvez possa acabar com toda a vida humana da terra, mas a princípio podem fazer outras coisas também.
Acabamos de ver um exemplo, há poucas semanas. Foi feito um experimento para desviar a órbita de um asteroide. Foi algo experimental, mas na hipótese de termos um asteroide rumando para nos atingir em alguns anos, as armas nucleares podem ser usadas para desviá-lo. Talvez pudéssemos desenvolver a fusão nuclear e, assim, produzir energia limpa.
Então seja lá o que você escolher, virtualmente qualquer coisa pode ser utilizada para destruir ou construir. E aqui vem a questão do empenho humano. Estruturas sociais humanas e instituições organizam o modo como os poderes são distribuídos e implicam diretamente questões de atritos humanos, na luta de classes, nos embates sociais. Então, como podemos utilizar a internet?
Podemos utilizar a internet para diversas formas de organização, e muito da organização ativista se dá pela internet. E é por isso que governos autoritários fecham a internet. Logo, haverá desdobramentos políticos mas ela pode ser utilizada para fins libertadores e para o conhecimento. Há 20 anos, se você quisesse ler algo da imprensa internacional, teria de buscar em uma grande livraria que talvez vendesse algo de mídia estrangeira. Agora você usa o seu próprio celular. Posso ler a Al Jazeera e tenho acesso à imprensa brasileira ao mesmo tempo.
A pesquisa é de tremendas possibilidades, ou pode ser utilizada, como você disse, para separar as pessoas em bolhas de auto-reforço e extremismo ideológico, mantendo grupos de comunicação e o contato entre eles para distribuir mentiras e promover destruição. Foi um exemplo memorável o das eleições de 2018 no Brasil. Vimos o material que circulava pelo WhatsApp, que era a fonte de informação mais usada.
Sim, isso abrange provavelmente cerca de metade dos que se identificam com o Partido Republicano nos Estados Unidos. Neste momento, eles acreditam que os democratas se dedicam a seduzir crianças para abusar delas sexualmente.
Então a tecnologia depende de nós. Como vamos utilizá-la? Usaremos para construir ou destruir. Com outras tecnologias também, o mesmo é válido aqui. E é uma questão de intenção, escolha, engajamento, comprometimento, organização e ativismo.
Escutando você hoje, nos deu a impressão de que há algum tipo de liderança política internacional que poderia fazer algo para parar esse processo destrutivo, mas ela não o faz — e até se recusa a fazer isso. Por quê? Por que nossas lideranças têm sido tão cegas?
As lideranças projetam a distribuição e o caráter das forças sociais nas sociedades em que vivemos. Essas sociedades são altamente desiguais, principalmente na América Latina, onde a praga da desigualdade é muito antiga. É uma desigualdade radical, que implica diretamente na natureza das instituições políticas.
É uma contenda constante. Nada de novo. Volte aos primeiros dias do capitalismo. Quando você lê Adam Smith, um astuto comentarista, você vê o que ele chamou de “mestres da humanidade”, que seriam os mercadores e manufatureiros na Inglaterra da época. Eles dominavam e controlavam o Estado, eram os principais arquitetos do poder. Eles faziam isso para que seus próprios interesses fossem atendidos, não importava o quão nefasto fosse o efeito disso para os outros. Eles viviam pela máxima do cada um por si de 250 anos atrás, mas é assim até agora. A questão é se os ativistas organizados podem lutar contra isso.
Pega a Constituição dos Estados Unidos, que é do século XVIII, e ali ela era um passo adiante que apavorou os líderes europeus — eles estavam preocupados com a ameaça subversiva de democracia, chamada de republicanismo, que poderia se espalhar, minando sua autoridade.
Se você olha para isso hoje, vê que a Constituição foi uma realização reacionária. Na realidade a Constituição, por si só, foi um golpe contra a democracia. Um golpe de fazendeiros contra a democracia. Ela foi um instrumento com mecanismos para exercer o controle, sendo o mais importante deles, o controle dos meios de produção e distribuição. E essa é a maneira como o mundo continua em desenvolvimento. O poder estará nas mãos da população geral se ela o tomarem. Se você decidir se conformar, garantirá que o pior aconteça.
Lembro, por exemplo, de 20 anos atrás, atendendo ao convite do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, muito alegre, centenas de pessoas interessantes. O slogan era Outro mundo é possível, trabalhando coletivamente. Todos nós estávamos juntos de camponeses, mulheres de todos os países, encontrando uma forma de trabalharmos juntos pelo bem comum. E aqueles movimentos tiveram seu impacto. Um grande impacto. Eles são as raízes. As chamas podem ser acendidas e passadas à frente.
Noam Chomsky é professor emérito de lingüística no Massachusetts Institute of Technology (MIT) e leciona na Universidade do Arizona. É autor de mais de 70 livros sobre linguística, conflitos armados, política, mídia e filosofia.
José Guilherme Pereira Leite é professor universitário, crítico e ensaísta.
Vanessa Nicolav é cientista social, videomaker e educadora audiovisual. Pesquisa temas relacionados a vídeo popular e movimentos sociais e vem desenvolvendo práticas de educação democrática audiovisual para jovens e adultos em oficinas no Brasil, Uruguai e Argentina. Já colaborou com veículos como Vice Brasil, Revista Trip, Agência Pavio, OXFAM, Rede Brasil Atual e Brasil de Fato. Também é produtora independente de vídeo ensaios e webdocumentários.
Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).